Temer grava documentário relatando os bastidores da pior crise de sua administração e diz que foi aconselhado a antecipar eleições

Intrigas, acusações e mágoas
VEJA teve acesso a depoimentos inéditos em que Temer relata os bastidores da pior crise de sua administração e diz que foi aconselhado a antecipar eleições


AUGE DA CRISE - Cena que deverá constar do documentário: convocação de uma Constituinte e eleição antecipada (//VEJA)

Michel Temer está finalizando o que chama de “documento histórico” sobre os dois anos e sete meses em que presidiu o Brasil. Entre julho e novembro, ele gravou dezesseis horas de depoimentos para o marqueteiro Elsinho Mouco e o escritor e filósofo Denis Lerrer Rosenfield, durante dez encontros realizados nas bibliotecas dos palácios da Alvorada e do Jaburu. O material será transformado em livro e num documentário, ambos com o mesmo título: O Brasil de Temer.VEJA teve acesso a parte dos depoimentos do presidente. Nela, Temer fala do impeachment de Dilma Rousseff à transição para Jair Bolsonaro, da família aos aliados encrencados com a Justiça. Mas fica claro que sua prioridade é registrar a sua versão sobre o dia em que o seu governo, na prática, ruiu — a quarta-feira em que se tornou pública a informação de que os donos da JBS haviam fechado acordo de delação premiada e acusado o presidente de se beneficiar pessoalmente de um gigantesco esquema de corrupção. Em seu relato, Temer apresenta-se como vítima de uma caçada judicial e de uma conspiração cujo objetivo era destituí-lo do poder e encarcerá-lo.
 
COMPLÔ -  O presidente acusa o ex-procurador-geral Rodrigo Janot de vazar uma informação falsa

COMPLÔ -  O presidente acusa o ex-procurador-geral Rodrigo Janot de vazar uma informação falsa (Dida Sampaio/Estadão Conteúdo - Jefferson Coppola - Marcelo Chello/Estadão Conteúdo)

O capítulo sobre o escândalo da JBS recebeu o título de “A trama”. Temer conta que estava reunido com governadores, discutindo uma forma de renegociar as dívidas dos estados com a União, quando foi informado por um assessor sobre a bomba que explodira em Brasília. Às 19h30 de 17 de maio de 2017, o colunista Lauro Jardim publicou no site do jornal O Globo a informação de que o empresário Joesley Batista entregara ao Ministério Público uma conversa gravada entre ele e Temer. Nela, conforme noticiado naquele dia, o empresário dizia que estava dando dinheiro para comprar o silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, e Temer respondia: “Tem que manter isso, viu?”. O diálogo tinha a aparência de uma tentativa do presidente de obstruir as investigações, o que poderia levar à cassação de seu mandato. “Fiquei chocadíssimo ao saber daquilo e percebi que aquilo daria pretexto às maiores campanhas difamatórias contra mim e, em segundo lugar, uma tentativa de derrubar o presidente”, diz Temer, ao relembrar as primeiras horas depois daquela hecatombe.

 

“CRIME DE AMIZADE” - Sobre os amigos envolvidos em corrupção, o presidente pouco fala, mas se exime de qualquer responsabilidade pelo que eles fizeram

Até no entorno presidencial havia quem achasse que o mandato estava, mesmo, devidamente incinerado. Em uma reunião com seis assessores, Temer ouviu de um deles um conselho claro e inequívoco: deveria convocar uma Constituinte e antecipar a eleição presidencial de outubro de 2018 para dezembro de 2017. Só assim evitaria a humilhação de ser defenestrado imediatamente do palácio. Temer rechaçou: “Se não resistisse, eu me autodeclararia culpado”. Aos seus entrevistadores, Temer contou que começou a sair das cordas quando o áudio da conversa gravada por Joesley Batista foi finalmente divulgado. O empresário não dissera claramente que estava comprando o silêncio de Cunha, mas — como ressalta de forma insistente o presidente nos depoimentos — limitou-se a falar que “estava de bem” com o ex-deputado. A tese de Temer é que, ao responder com o hoje notório “Tem que manter isso, viu?”, ele apenas expressou sua fé na relação cordial e desinteressada entre duas pessoas. “Essa frase é falsa, não existe na gravação. Então, eu quero esclarecer isso para não ficar aquela sensação de que eu mandei dar dinheiro para alguém”, diz o presidente. “Veja que indignidade fizeram comigo. Uma tentativa de destruição moral e naturalmente destruição do governo. Tanto que se pensava que três ou quatro dias depois daquela malfadada gravação eu iria renunciar. Não renunciei.”

“Ele (Rodrigo Janot) realmente causou um mal a mim e ao país. Eu ia votar a reforma da Previdência no máximo dez dias depois daquela oportunidade em que esse cidadão se comunicou com a Globo para dizer que tinha essas duas frases. Veja o mal que ele causou ao país indevidamente, mentirosamente.”

Sobre o ex-procurador da República


No “documento histórico”, o alvo principal de Temer é o ex-procurador-­geral da República Rodrigo Janot, que fechou o acordo de delação dos donos da JBS. Temer acusa Janot de passar para o jornal O Globo a versão de que, na conversa gravada, o presidente avalizava a compra do silêncio de Cunha. “Dirigentes de setores de comunicação, especialmente aqueles que divulgaram pela primeira vez, me disseram ‘Olha, só divulgamos antes de ouvir o áudio porque vinha de uma figura eminente da Procuradoria-Geral da República’. Isso eu ouvi de um dirigente e do próprio diretor de redação”, afirma Temer. Ele se recusa até mesmo a mencionar o nome de Janot, a quem culpa pelo fato de o seu governo não ter conseguido aprovar a reforma da Previdência e ter chegado a um fim precoce. “Ele realmente causou um mal a mim e ao país. Eu ia votar a reforma da Previdência no máximo dez dias depois daquela oportunidade em que esse cidadão se comunicou com a Globo para dizer que tinha essas duas frases. Veja o mal que ele causou ao país indevidamente. Mais do que indevidamente, mentirosamente.”
 

“DESVIOS”-   Rápidas considerações sobre Eduardo Cunha e a dinheirama de Geddel Lima

Durante as gravações, Temer fez questão de ser filmado no “porão” em que recebeu Joesley para conversar. Assim, quis desmistificar a ideia de um encontro escondido. Ao desfilar diante das câmeras, mostra que o local é uma sala de reuniões, no subsolo do Palácio do Jaburu, ladeada por uma sala de TV e dois cômodos ornamentados com obras de arte. “Essa história de porão foi para tentar me desmoralizar: ‘escondeu, ele recebe subterraneamente’. Chamar aquilo de porão é ofender o Palácio do Jaburu.” Com base na delação dos donos da JBS, Janot apresentou denúncia contra Temer. Um dos pontos altos da denúncia são as cenas, gravadas pela Polícia Federal, em que o ex-assessor especial da Presidência Rodrigo Rocha Loures aparece, aos pulinhos, esgueirando-se pelas ruas de São Paulo com uma mala recheada de 500 000 reais de propina da JBS. O destinatário final do dinheiro, segundo delatores da JBS, seria Temer, que ainda receberia outras mesadas, sempre do mesmo valor, ao longo de vinte anos. O presidente desdenha da acusação: “Eu ia ficar vinte anos recebendo. Imagina só”.
 

EX-PRESIDENTE – Temer, com FHC: para ele, o mensalão de Lula só surgiu porque o petista não cumpriu acordo com o PMDB

Temer afirma ter recebido a informação de que havia um chip na mala de Rocha Loures para que a polícia a rastreasse. Como a mala não chegou a suas mãos, mas ficou guardada num armário no apartamento dos pais de Loures, o chip teria sido jogado fora pelos investigadores, como forma de manter as suspeitas sobre Temer. A informação, segundo ele, lhe foi passada por policiais que trabalharam no caso. O presidente tem opiniões desabonadoras sobre Joesley Batista, mas, nas gravações, não o chama de “marginal”, como costuma fazer em reservado. A admiração é recíproca. O empresário não se cansa de repetir que Temer não tem cerimônia para falar “de dinheiro, de rolo”. Os entrevistadores perguntaram a Temer sobre seus aliados presos ou sob investigação. Temer responde que Rocha Loures cometeu um “desvio lamentável” e que só “doença” explica o fato de seu ex-ministro Geddel Vieira Lima, que está preso, ter guardado mais de 50 milhões de reais em dinheiro vivo num apartamento em Salvador. Sobre o ex-­presidente da Câmara Eduardo Cunha, também preso, afirma que mantinha com ele uma relação apenas institucional.




“Ao longo do tempo você vai construindo relações de natureza política que se transformam em amizade de natureza política. E naturalmente eu construí muitas. E, ao construir essas amizades, algumas tiveram problemas perante o Judiciário. É o chamado crime de amizade.”

Sobre os amigos envolvidos em corrupção


Numa tentativa de se defender, Temer faz menção a outro ex-presidente da Câmara, seu amigo Henrique Eduar­do Alves, que já esteve encarcerado. De modo geral, o presidente alega que quem errou deve pagar por seus atos e faz questão de defender a tese de Denis Rosenfield segundo a qual Temer é acusado de cometer o “crime de amizade” — e não de integrar quadrilha, como afirma o MP. “Ao longo do tempo você vai construindo relações de natureza política que se transformam em amizade de natureza política. E naturalmente eu construí muitas. Algumas tiveram problemas perante o Judiciário, mas há empresas de comunicação que são coligadas a essas pessoas. Vamos tomar aqui o nome do Henrique Alves, que tem a concessão da Rede Globo lá no Rio Grande do Norte. O senador Collor tem lá em Alagoas também. De igual maneira no Maranhão.” Nos trechos do depoimento a que VEJA teve acesso, Temer não faz nenhum comentário sobre o advogado José Yunes e o coronel João Baptista Lima Filho, ambos amigos de longa data e igualmente acusados de receber propina em seu nome.
 

OS PRESIDENCIÁVEIS – Críticas severas aos candidatos Ciro Gomes, Marina Silva e Fernando Haddad — que atacaram o governo durante a campanha —, e elogios e cordialidade ao presidente eleito Jair Bolsonaro, com quem gravou imagens para o documentário que será lançado em 2019


“(Ciro) É uma figura desarrazoada. Esse coitado se perde pela própria língua. Ele se desarranja por conta própria, não precisa de inimigos. (…) Eu vejo a Marina dizer com tranquilidade: nós estamos vulnerando o meio ambiente… Se eu estivesse lá, diria: é mentira. Vá procurar os dados! (…) Bolsonaro catalisa a insurgência nacional”

Sobre os presidenciáveis durante a campanha

Temer também se ocupa em falar de política. A certa altura, afirma que o mensalão só existiu porque o então presidente Lula decidiu romper um acordo com o PMDB, preterindo-o na formação de sua base governista. A ideia inicial era dar dois ministérios ao partido, mas o petista desistiu da parceria e loteou o seu governo entre outras legendas — entre elas o PTB de Roberto Jefferson e o PR de Valdemar Costa Neto. Temer discorre ainda sobre a eleição presidencial, resumindo assim o páreo: quem o atacou perdeu. Fernando Haddad é chamado de mentiroso por acusá-lo de acabar com direitos ao aprovar a reforma trabalhista. Ciro Gomes, que volta e meia chama o MDB de quadrilha, apanha sem dó nem piedade. “É uma figura desarrazoada. Esse coitado se perde pela própria língua. Ele se desarranja por conta própria, não precisa de inimigos.” Marina Silva também não escapa: “Eu vejo a Marina dizer com tranquilidade: nós estamos vulnerando o meio ambiente… Se eu estivesse lá, diria: é mentira. Vá procurar os dados!”. Jair Bolsonaro, que o poupou de críticas durante a campanha eleitoral, recebe, por sua vez, o melhor dos tratamentos: “Bolsonaro catalisa a insurgência nacional”.
 

TESTAMENTO – Temer, com o filósofo Denis Rosenfield (à esq.) e o marqueteiro Elsinho Mouco: dezesseis horas de gravação

O presidente descarta a possibili­dade de ser embaixador no próximo governo, o que dificultaria sua prisão caso ela fosse determinada pela Justiça. Alega que qualquer ato que sugira tentativa de fuga será interpretado como confissão de culpa. Prestes a deixar o cargo, ele tem dois objetivos. No campo pessoal, voltar a morar em São Paulo e a trabalhar como parecerista. Também foi convidado a dar aulas em Portugal (veja o quadro abaixo). No campo político, terminar o mandato com 30% de aprovação e — se seu “documento histórico” ajudar — contar com maior benevolência tanto da opinião pública como do Judiciário. Não custa tentar.

Com a Justiça nos calcanhares
 
CORRUPÇÃO – Porto de Santos: esquema de propina desde a década de 90

O presidente Michel Temer foi acusado de ter praticado crime de corrupção pela terceira vez. Numa manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal na segunda-feira 3, a procuradora-­geral da República, Raquel Dodge, afirmou que Temer e seus dois principais ministros, Eliseu Padilha e Moreira Franco, foram beneficiados com 4 milhões de reais em vantagens indevidas desembolsadas pela Odebrecht, referentes à concessão do Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Parte desse dinheiro foi entregue ao coronel aposentado João Baptista Lima Filho, amigo do presidente, conforme provas coletadas pela Polícia Federal. Além disso, Temer e Padilha são acusados de negociar 10 milhões de reais em repasses da Odebrecht em 2014. Uma fatia desses recursos foi destinada ao advogado José Yunes, outro amigo de Temer. O presidente ainda não foi denunciado nesse caso, porque, graças ao cargo, tem imunidade — não pode ser processado por irregularidades praticadas antes de seu mandato no Palácio do Planalto. Os dois casos foram revelados por VEJA em 2016.

A Justiça estará nos calcanhares do presidente a partir de janeiro. Temer é alvo não apenas da investigação relacionada às propinas da Odebrecht, mas também de duas denúncias de crimes cometidos durante o exercício do mandato. As acusações, baseadas na delação de executivos da JBS, não prosperaram porque foram arquivadas em 2017 pela Câmara dos Deputados. No entanto, quando passar a faixa ao sucessor, Temer voltará a responder por essas duas ações perante os tribunais. Nesses casos, ele foi acusado de ter praticado os crimes de corrupção, organização criminosa e obstrução da Justiça. O presidente ainda está envolvido em um quarto processo. Em outubro, a Polícia Federal concluiu uma investigação em que o aponta como integrante e beneficiário de um esquema de pagamentos de propinas no Porto de Santos, litoral paulista, desde a década de 90. Não será uma aposentadoria das mais tranquilas.

 

EPÍLOGO - Sala da Universidade de Coimbra: convite a Temer

Após passar o cargo e a faixa a Jair Bolsonaro, o presidente Temer pretende gravar mais um depoimento, que será usado para encerrar o documentário em gestação. Há algumas semanas circulou em Brasília a informação de que ele teria sido convidado pelo presidente eleito para assumir a embaixada brasileira na Itália. O posto, um dos mais cobiçados dentro do Itamaraty, permitiria ao presidente manter o foro privilegiado, o que lhe daria o direito a continuar respondendo aos processos junto ao Supremo Tribunal Federal. Temer garante que o convite nunca existiu e, se tivesse existido, declinaria dele. “Isso seria interpretado como uma tentativa de blindagem ou mesmo uma fuga para evitar os processos”, disse um assessor do Planalto. A hipótese de uma mudança para a ­Europa, porém, está no horizonte.

Segundo o mesmo assessor, Temer foi convidado pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para lecionar na Universidade de Coimbra. Os dois foram colegas de cátedra na PUC-­SP na década de 80. Antes de entrar para a política, Michel Temer atuou como advogado e professor de direito constitucional. Ao deixar o Palácio do Planalto em 1º de janeiro, ele voltará a morar em sua casa, no bairro Alto de Pinheiros, em São Paulo. Na condição de ex-presidente, terá direito a dois carros, dois motoristas e seis assessores, incluindo os seguranças. A impopularidade do governo, que chegou a registrar um índice recorde de rejeição de 82%, por meses confinou a família Temer aos limites do Palácio do Jaburu. Trabalhando e morando na ­Europa, acredita Temer, tanto ele como a primeira-dama Marcela e o filho Michelzinho, de 9 anos, teriam mais privacidade. Por enquanto, a única decisão tomada pelo presidente é manter distância da política. Enquanto decide se permanecerá ou não no Brasil, Temer diz que pretende ministrar palestras e escrever um romance.

Daniel Pereira e Marcela Mattos

Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612


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